O processo de aldeamento dos povos indígenas das ribeiras do Moxotó e Pajeú pelos frades capuchinhos Vital de Frescarolo e Ângelo Maurício de Nisa no começo do século XIX.
Por: Carlos Fernando dos Santos Júnior
Mestre em História pela UFPE
Professor da Secretaria de Educação de Pernambuco (SEE-PE)
Colaboração de Estêvão Palitot.
Imagem da capa:
No século XVIII nas regiões do Rio São Francisco e das ribeiras do Pajeú e Moxotó viviam os Brancararu, Procá, Rodela, Tamaqueu, Oê (Hoês Hoês), Chocó, Carnijó, Carapotó, Pipipã e Umã (Costa, v. 5, 1987a, p. 165-171; Medeiros e Mutezenberg, 2017). A maioria dessas etnias estavam reunidas nas missões religiosas instaladas nas ilhas do São Francisco desde o século XVII. Enquanto as missões nas ilhas atraíam a atuação de diversas ordens missionárias os povos que viviam nas caatingas mais distantes do rio evitavam, com muito custo, maiores aproximações com o mundo colonial. Apesar disso o cerco se fechava mais e violentos conflitos ocorriam (Pompa, 2003; Galindo, 2017).
No mapa destacamos 8 camadas de informações: (1) rios e riachos, (2) serras, (3) sertões/ribeiras/distritos, (4) Estrada Real de Recife a Cabrobó, (5) fazendas, (6) povoações de brancos, (7) aldeamentos existentes, (8) aldeamentos criados no período abordado. Nessas camadas constam ainda informações sobre povos indígenas, conflitos e aldeamentos que estavam abandonados naquele período.
Na década de 1760 o Governador da Capitania de Pernambuco, Diogo Lobo da Silva (1756-1763) aplicou o Diretório Pombalino em Pernambuco e nas capitanias anexas. No caso da sua execução nos aldeamentos no São Francisco, Diogo Lobo adaptou o Diretório à realidade do Sertão do São Francisco. Assim, as várias etnias aldeadas seriam reunidas nas ilhas do Arapuá e do Pambu (antigas missões dos índios Kariris). Elas seriam transformadas em vilas de índios denominadas Santa Maria e Assunção, respectivamente (Medeiros e Mutzenberg, 2014).
A Vila de Santa Maria tinha 275 fogos e 668 almas agregadas das antigas Aldeias dos Coripós (índios Coripó e Karacois), Inhanhum (nação Kariri), São Felix (Kariri), Araripe (nações Enxu e Karacoi), Pontal (Tamaqueu e Umã trazidos do mato/Serra Negra). Enquanto a Vila de Assunção possuía 276 Fogos e 713 Almas, resultantes da união das "antigas aldeias de Axará da nação Procás e Brancararu, a da Vargem da nação Brancararu, a do Sarobabel da nação Pacuruba, e a do Brejo do Gama dos Índios mais bárbaros das nações Oê, Chocó, Pipipã, Mangueza e pessoas que estavam no Sítio do Riacho do Navio tratados por escravos"[1].
Na primeira metade do século XIX, a região foi castigada por uma seca de longa duração. No momento que a pecuária estava ocupando novos territórios às margens dos rios Moxotó e Pajeú incluindo os riachos do Navio, da Terra Nova e da Brígida e as regiões de brejos na Serra Negra, na Serra dos Cariris Novos e Serra Grande do Pajeú. Inevitavelmente, conflitos entre indígenas e criadores de gado aconteceram.
O governo de Pernambuco da época recebia inúmeras denúncias, algumas falsas, de moradores do Pajeú e Moxotó acusando os índios "brabos" de ataques à fazendas, assassinatos de brancos e escravos. Segundo esses relatos, após os ataques os índios se refugiavam na Serra Negra. Também o governo recebia denúncias das autoridades civis, militares e religiosas de ataques e massacres injustificáveis de moradores contra populações indígenas “mansas”.
Para pacificar a região, no ano de 1801, o morador Francisco Barbosa Nogueira foi nomeado Juiz Ordinário do Julgado do Pajeú e Diretor dos Índios da Missão do Olho d'Água da Gameleira. A sua função era apurar os fatos de violência, punir os envolvidos de ambos os lados (moradores e índios) e reunir as populações indígenas “mansas” na Aldeia do Olho d’Água da Gameleira. Logo em seguida, o governo enviaria o padre capuchinho italiano Frei Vital de Frescarolo para cuidar da catequese. Poucos anos depois ele seria sucedido por Frei Ângelo Mauricio de Nisa.
Ambos aldearam e catequizaram os “gentios” Pipipã, Chocó, Oê (Vouê) e Omaris (Umã) na Serra Negra e nas ribeiras do São Francisco e do Pajeú. Frei Vital fundou a Aldeia do Jacaré na Serra Negra para reunir os Pipipã em 1802 e no ano de 1804 a Missão do Olho d'Água da Gameleira, que já reunia os Umã e os Vouê desde 1801, foi oficializada por ordens oficiais.
Já no ano de 1806, esses “gentios” foram transferidos para Missão da Baixa Verde, sobre os cuidados do Frei Ângelo de Nisa. A razão da mudança se deve a conflitos internos entre os grupos étnicos aldeados, a fome produzida pela seca severa e ataques de fazendeiros no Pajeú e Moxotó. Essa transferência foi formalizada pelo governador de Pernambuco da época, Caetano Pinto de Miranda Montenegro. No ano de 1812, o Príncipe Regente D. João concedeu meia légua de terra em quadra para os índios na nova Missão da Baixa Verde. E assim nasceu a Missão de Nossa Senhora das Dores da Baixa Verde[2]. Nela o Frei Ângelo de Nisa permaneceu na direção da Missão até o seu falecimento em 1824 (SILVA e FONTOURA, 2005). Após o falecimento do capuchinho, a Missão da Baixa Verde durou pouco. Os indígenas aldeados lá acabaram se dispersando e abandonando-a em virtude da perseguição dos moradores da Vila de Flores. Na atualidade a Missão da Baixa Verde é o Município de Triunfo (PE).
Além dessas aldeias há menções à criação da aldeia do Brejo dos Padres, com indígenas trazidos de Curral dos Bois na Bahia e outros vindos de Serra Negra. Não há documentos que assegurem a data exata de fundação deste aldeamento.
"mas uma tradição local assevera que foi [criado] no ano de 1802. Em 1855, a sua população era de 580 índios, e tinha duas léguas quadradas de terra. Várias tentativas foram feitas entre 1857 e 1859 com a finalidade de aldeiar em Brejo-dos-Padres os índios errantes da Serra Negra, mas nada resultou dêsses esforços." (Hohenthal Jr., 1960, p. 55).
Em março de 1802 é mencionado o esforço de aldeamento de um grupo de índios do lugar Cancalancó, na ribeira do Moxotó. O vaqueiro Manuel Machado, o Vigário de Cabrobó, e os moradores Joaquim Inácio de Siqueira e Luis Rodrigues de Siqueira organizaram uma expedição para encontrá-los.
Os quatro foram "com grande geito, e amor a falar com elles, que estavam com seo pavor por que asim que me virão entrarão a tomar a bença: eu [Joauqim Inácio] entrei a falar lhe muito alegre que em pouco tempo estavam me abraçando", e acompanharam os índios até o local onde moravam e permaneceram até a noite. No dia seguinte, os índios foram à casa de Joaquim para pedir terras e o mesmo concordou que seria as terras do Sítio do Macaco – pois se tratavam de terras doadas anteriormente para aldeamento – até as terras de Serrinha que tinha boa mata e ficava perto da sua fazenda.
De acordo com Joaquim, "estes compadres (índios), e ficaram muito pertos com nós, de vir as nossas cazas nos vizitar dizendo, que levarão muita saudades tantas quantos dedos tinham nas mãos: é como milhor se espresarão com os compadres". Joaquim informou que regularmente visitava a aldeia passando dois dias, onde residiam 79 índios entre adultos e crianças, e entre estes 28 foram batizados. Ainda existiam índios pelos "matos", mas os que estavam aldeados prometeram que havia de sair todos dos "matos" para morar na aldeia.
Muito provavelmente cansados de perseguições e violências os indígenas buscavam encontrar algum tipo de proteção, principalmente em espaços missionários. A documentação nos sugere fortemente que esses indígenas já tinham experienciado os aldeamentos tanto no Brejo do Gama quanto nas ilhas do São Francisco, tendo retornado "aos matos" com a crise desses espaços transformados em Vilas de Índios, que se tornaram incapazes de oferecer um abrigo minimamente adequado aos indígenas frente à voracidade dos curraleiros. O relato do Frei Vital de Frescarolo sobre os Pipipã e os Chocó é muito nítido nesse sentido.
A experiência dos aldeamentos entre o Moxotó e o Pajeú durou pouco tempo. Após o falecimento de Frei Maurício nenhum outro missionário foi enviado para a região e a população indígena, fortemente perseguida, retornou aos seus antigos lugares de refúgio nas caatingas. Porém, havia cada vez menos espaço para eles e onde quer que chegassem havia novas fazendas sendo instaladas. Ao longo do século XIX serão registrados inúmeros conflitos e tentativas de aldeamento desses grupos indígenas numa vasta região desde o rio São Francisco até os sertões do Piancó (PB) e Cariris Novos (CE), tornando-se famoso o caso do aldeamento da Cachorra Morta, no termo de Milagres, no Ceará (Magalhães, 2011; Valle, 2011; Santos, 2015; Oliveira, 2017; Medeiros e Mutzemberg, 2023).
Referências:
Arquivo Histórico Ultramarino (AHU), Carta de Diogo Lobo da Silva para o Secretário de Estado da Marinha e Ultramar, Francisco de Xavier Mendonça Furtado, da relação das vilas de índios criadas na Capitania de Pernambuco e capitanias anexas durante o seu governo. 23 de novembro de 1763.
Carta de Frei Vital de Frescarolo ao Bispo de Pernambuco [1802]. in: Informações sobre os índios bárbaros dos Sertões de Pernambuco em [04/09/1802]. Revista do Instituto do Ceará. Fortaleza: Tomo XXVII. 1913. p. 203-219.
COSTA, F. A. Pereira da. Anais pernambucanos. 1701-1739. Recife: Arquivo Público Estadual, v. 5, 1987a.
____________________. Anais pernambucanos. 1795-1817. Recife: Arquivo Público Estadual, v. 7, 1987b.
GALINDO, Marcos. O governo das almas: a expansão colonial no país dos tapuias (1651-1798). São Paulo. Hucitec Editora, 2017.
HOHENTHAL JR., W. D. As tribos indígenas do médio e baixo São Francisco. Revista do Museu Paulista, Nova Série v. XII, São Paulo: Museu Paulista, 1960, p. 37-86
MAGALHAES, Eloi dos Santos . 'Faroeste Caboclo': catequese e civilização de índios Chocós na província do Ceará. In: João Pacheco de Oliveira. (Org.). A presença indígena no Nordeste. 1ed.Rio de Janeiro: Contra Capa, 2011, v. , p. 9-714.
MEDEIROS, Ricardo Pinto de; MUTZENBERG, Demétrio. Cartografia histórica dos povos indígenas em Pernambuco no Século XVIII. Clio. Série Arqueológica. Recife, UFPE, v. 28, p. 180-209, 2013.
MEDEIROS, R. P. ; MUTZENBERG, D. . Cartografia histórica das relocações indígenas nas ilhas do Submédio São Francisco no período pombalino. Revista Ultramares , v. 05, p. 01-19, 2014.
MEDEIROS, Ricardo Pinto de; MUTZENBERG, Demétrio. Cartografia histórica de etnias, aldeamentos, conflitos e deslocamentos indígenas entre os sertões de Pernambuco, Paraíba e Ceará no século XIX. In, Moreira, Vânia Maria Losada et. All (Org.) Povos indígenas, independência e muitas histórias: repensando o Brasil no século XIX. Curitiba: CRV, 2022.
MEDEIROS, Ricardo Pinto de. O descobrimento dos outros: povos indígenas do sertão nordestino no período colonial. Recife: UFPE, 2000. (Tese Doutorado em História).
POMPA, Cristina. Religião como tradução: missionários, Tupi e “Tapuia” no Brasil Colonial. Bauru/SP: EDUSC, 2003.
PUNTONI, Pedro. A Guerra dos Bárbaros: povos indígenas e a colonização do Sertão Nordeste do Brasil, 1650-1720. São Paulo: Hucitec: Edusp: Fapesc, 2002.
OLIVEIRA, Antonio José de. Os Kariri-resistências à ocupação dos sertões dos Cariris Novos no século XVIII. Tese de doutorado em História. PPGH/UFC. Fortaleza - CE, 2017
SANTOS JUNIOR, Carlos Fernando dos. Índios nos vales do Pajeú e São Francisco: historiografia, legislação, política indigenista e os povos indígenas no Sertão de Pernambuco (1801-1845). Recife\PE. Dissertação de Mestrado em História, Universidade Federal de Pernambuco\UFPE, 2015.
VALLE, Carlos Guilherme Octaviano do. Terras, índios e caboclos em foco: o destino dos aldeamentos indígenas no Ceará (século XIX). In: João Pacheco de Oliveira. (Org.). A presença indígena no Nordeste: processos de territorialização, modos de reconhecimento e regimes de memória. 1ed.Rio de Janeiro: Contra capa, 2011, v. 1, p. 9-714.
Para saber mais:
MENDONÇA, Caroline Leal. ANDRADE, Lara Erendira. PANKARÁ, Luciete Lopes. ATIKUM, Edneuma Oliveira de Sá. (orgs.) Nossa serra, nossa terra: identidade e território tradicional Atikum e Pankará. [Recurso eletrônico] Conselho de Professores Indígenas Atikum e Organização da Educação Escolar Pankará – COPIPE. 2013.
MACÊDO, Heitor Feitosa de. Massacre aos Índios Xocó no Cariri Cearense: Documento Inédito. Blog Estórias e História. 2017.
Frei Vital de Frescarolo. Informações sobre os índios bárbaros dos Sertões de Pernambuco em [04/09/1802]. Revista do Instituto do Ceará. Fortaleza: Tomo XXVII. 1913. p. 203-219.
LOPES, Fátima Martins. Em nome da liberdade: as vilas de índios do Rio Grande do Norte sob o Diretório Pombalino no século XVIII. Recife: UFPE, 2005. (Tese Doutorado em História).
MOREIRA NETO, Carlos de Araujo. Os índios e a ordem imperial. Brasília: CGDOC/FUNAI, 2005.
OLIVEIRA, João Pacheco de. (Org.). A presença indígena no Nordeste: processos de territorialização, modos de reconhecimento e regimes de memória. Rio de Janeiro: Contra Capa, 2011.
ROSA, Hildo Leal da. A Serra Negra: refúgio dos últimos “bábaros” do Sertão de Pernambuco. Recife: UFPE, 1988. (Monografia Graduação em História).
SALDANHA, Suely Maris. Fronteiras dos sertões: conflitos e resistência indígena em Pernambuco na Época de Pombal. Recife: UFPE, 2002. (Dissertação Mestrado em História).
SILVA, Edson Hely. História indígena em Pernambuco: para uma compreensão das mobilizações indígenas recentes a partir de leituras de fontes documentais do Século XIX. Revista do Instituto Arqueológico, Histórico e Geográfico Pernambucano, v. 64, p. 73-114, 2011.
SILVA, Kalina Vanderlei Paiva da. "Nas solidões vastas e assustadoras": os pobres do açúcar e a conquista do Sertão de Pernambuco nos séculos XVII e XVIII. Recife: UFPE, 2003. (Tese Doutorado em História).
Notas:
[1]APEJE. AHU, ADENDA, Pernambuco, 23 de novembro de 1763, Cx76, doc. 27. Carta de Diogo Lobo da Silva para o Secretario de Estado da Marinha e Ultramar, Francisco de Xavier Mendonça Furtado, da relação das vilas de índios criadas na Capitania de Pernambuco e Capitanias Anexas durante o seu governo, fls. 21-40. [2]MJPE. Comarca de Flores Cx. 381 ROR 05/03/1814: Carta. Registro da Carta de Sesmaria de meia légua de terra concedida aos índios da nova Missão de Baixa Verde na Serra Grande, Termo da Vila de Flores, fl. 50-51.
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