Informações sobre as aldeias indígenas prestadas pelo padre jesuíta Manoel de Moraes aos holandeses em 1635
No mapa remontamos, a partir do relato do padre Manoel de Moraes, a localização das aldeias indígenas existentes entre as capitanias de Pernambuco e do Rio Grande, em 1635. Ocasião quando os holandeses dominara parte do que hoje é o Nordeste brasileiro [i].
O padre Manoel de Moraes foi um missionário nas aldeias tupis em Pernambuco. Nascido em São Paulo, era um mameluco[ii] que foi educado nos colégios da Companhia de Jesus. Desde 1622 estava em Pernambuco e atuava principalmente na aldeia de São Miguel de Muçuí. Falante nativo da língua geral (o tupi) ele era um importante personagem da catequese católica na região.
Com a invasão da Companhia Holandesa das Índias Ocidentais, em 1630, e a conquista de Olinda e Recife, as forças portuguesas se aquartelaram no Arraial do Bom Jesus, na várzea do Capibaribe. A aldeia de São Miguel de Muçuí [iii] ocupava posição estratégica na retaguarda do Arraial, nela foi montado um “hospital de sangue” para tratar os feridos. O padre Manoel tornou-se então um importante líder da resistência pernambucana aos invasores. Ele exercia grande influência sobre os indígenas das aldeias missionadas e tinha Felipe Camarão [iv] como um dos seus maiores aliados.
Mesmo como padre, Manoel de Moraes comandou as tropas indígenas em campo de batalha, dando combate aos holandeses durante anos seguidos. Entre 1630 e 1634 atuou em várias frentes da guerra: Santo Amaro, Recife, Baía da Traição, Itamaracá, Rio Grande e Paraíba.
Nas últimas semanas de 1634 os holandeses atacaram a Capitania da Paraíba, até então importante foco de resistência. Após duas semanas de intenso combate, as fortalezas de Santa Catarina e Santo Antônio, localizadas em Cabedelo, na barra do Rio Paraíba, se renderam. As tropas luso-brasileiras se retiraram pela várzea do rio Paraíba, deixando a cidade de Filipéia (atual João Pessoa) e vários engenhos desguarnecidos ou mesmo em rendição. De engenho a engenho a retirada ocorria e, entre as tropas, estavam também os indígenas liderados por Manoel de Moraes.
Assim, em meio à retirada, Manoel de Moraes decidiu render-se e passar para o lado dos holandeses, já nos primeiros dias de 1635. Um trunfo poderoso. Ao mudar de lado levava junto informações estratégicas importantes e também todo significado simbólico de um padre jesuíta abandonando a religião católica romana em favor do calvinismo. A saga de Manoel de Moraes ainda é pouco conhecida do grande público, mas já rendeu estudos importantes e detalhados.
Nota sobre o mapa: dividimos o mapa/relato de Manoel Moraes em seis camadas que indicando: [1] aldeias indígenas; [2] arraiais militares; [3] cidades, vilas e povoações; e [4] engenhos. O relato também considerou aspectos importantes para aquele momento de conflito como as [5] fortificações e os [6] movimentos militares. Esses últimos aparecem no mapa como linhas pontilhadas possibilitando acompanhar o trajeto das forças holandesas e o posterior movimento de retirada das forças portuguesas.
Como navegar: Ao passar o cursor por cima dos pontos do mapa é possível conferir os trechos do documento citado por Vainfas (2008) referente a cada um deles. Para instruções de como explorar essa ferramenta clique aqui.
Sobre o mundo indígena daquela época vale mencionar que das 18 aldeias citadas, 6 delas se encontravam em território atualmente de Pernambuco, incluindo as situadas na então Capitania de Itamaracá: São João de Carrese [atual Caricé, distrito do município de Itambé]; Santo André de Itapecerica [atual sede do município de Condado]; e Tabuçurana ou Nossa Senhora da Assunção [atual Chã de Sapé, distrito de Itaquitinga]. Já em Pernambuco ficavam: Mocnigh (S.Miguel de Muçuí) [localizada no antigo engenho Aldeia, atualmente Campo de Instrução do Exército Brasileiro, entre os municípios de Araçoiaba e Paudalho ]; Nossa Senhora de Ipojuca [atual cidade de Escada]; e, por fim, São Miguel de Iguna [entre as cidades de Barreiros e São José da Coroa Grande, próximo ao rio Una, à época chamado Iguna].
O trecho a seguir, que baseia a produção do mapa, foi extraído de um desses estudos, o livro Traição - Um jesuíta a serviço do Brasil Holandês processado pela Inquisição, de autoria de Ronaldo Vainfas. Nele podemos observar os valiosos conhecimentos de Manoel de Moraes sobre o país que os holandeses estavam conquistando e sobre os indígenas e suas aldeias.
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"É certo que [Manoel de Moraes] passou preciosas informações aos holandeses sobre os aldeamentos existentes nas capitanias conquistadas e por conquistar, permitindo-lhes melhorar e corrigir as informações que possuíam a partir da Memória de Adriaen Verdonck, datada de 1630, ou de outros informantes. Conhecedor do mundo indígena, sabia nomear e localizar as aldeias, muitas vezes seus principais chefes e, ainda, seu potencial de guerra. Eram informações frescas de quem conhecia o assunto como ninguém, e mais tarde foram registradas em detalhe no livro de Joannes de Laet sobre a guerra pernambucana [1].
Manoel de Moraes informou aos holandeses que havia seis aldeias na Paraíba e outras tantas no Rio Grande, até então sujeitas aos portugueses, mas acrescentou que estavam todas muito enfraquecidas pelos ataques dos holandeses e tapuias. Não podiam dispor juntas senão de oitocentos guerreiros e sua população total seria de 3 mil pessoas.
Na Paraíba, nomeou a aldeia de Jaraguaçu ou Eguararaca, chefiada por Francisco Araduti, distante quatro léguas (24 quilômetros) da cidade, por terra, e sete léguas (42 quilômetros) rio acima, sendo o caminho fluvial o mais frequentado; a aldeia de Jacknigh, assim grafada pelo holandês, provavelmente a São Miguel de Urutagui, uma légua (6 quilômetros) adiante da primeira, cujo chefe era João Javarati; a aldeia de Iapuã ou Iguapuã, no Pontal, a cinco léguas (trinta quilômetros) do forte de Santo Antônio, chefiada por Francisco Cavaraia; a aldeia de Tapoa ou Urecutuva, com seu chefe Francisco Gopeka, distante cerca de dez léguas (sessenta quilômetros) da cidade, na altura das cabeceiras do rio Paraíba, próxima ao engenho de Antônio Valadares, onde Manoel se havia “rendido” aos holandeses; a aldeia de Inocoça ou Jaocoça, a quatro léguas (24 quilômetros) da cidade da Paraíba, no caminho de Goiana, em Pernambuco, chefiada pelo índio Diogo Botelho; a aldeia de Pindaúna, liderada por Manibassu, a seis léguas (36 quilômetros) a cidade da Paraíba, na mesma direção de Goiana.
No Rio Grande, Manoel nomeou as aldeias de Mopebi ou Paraguassu, ambas entre o Rio Grande e Cunhaú, acrescentando que estavam unificadas, embora mantivessem seus próprios capitães, respectivamente Antônio de Ataíde e Francisco Vaibitari; a de Iguapa ou Iguapera, na outra banda do Rio Grande, sete léguas (42 quilômetros) ao norte do forte dos Reis Magos, cujo chefe era o capitão Feliciano; a de Pirari, a duas léguas (doze quilômetros) de Cunhaú, chefiada por André Carurare; a de Viajana ou Goacana, a sete léguas (42 quilômetros) de Cunhaú, para o lado do Rio Grande, liderada por Francisco Jakuina; a de Itaipi, sete léguas (42 quilômetros) a oeste do forte dos Reis Magos, cujo chefe era o capitão Itaichama.
Quanto às aldeias de Pernambuco e Itamaracá, informou Manoel que se mantinham vigorosas, pois não haviam sido muito flageladas na guerra, podendo dispor de cerca de 3 mil índios para combate. Indicou, porém, somente seis aldeias, três para cada capitania. No caso de Itamaracá, nomeou a aldeia de São João de Carrese, a onze léguas de Itamaracá (66 quilômetros) e a duas (doze quilômetros) de Goiana, chefiada por Guatasar de Souza, que contava com seiscentos habitantes, dos quais duzentos guerreiros; a aldeia de Santo André de Itapecerica, distante nove léguas (54 quilômetros) de Itamaracá, cerca de duas léguas (doze quilómetros) de Goiana, 1200 a 1300 habitantes, mais de quinhentos guerreiros e dois capitães, a saber, Joressi e Melchior Taiasica; a aldeia de Tabuçurana ou Nossa Senhora da Assunção, a sete léguas (42 quilômetros) de Itamaracá, cinco (trinta quilómetros) de Goiana, seiscentos habitantes, 180 guerreiros, comandada por Marco ou Maru Kuyasana.
No caso de Pernambuco, nomeou Mocnigh, assim grafada em holandês, na realidade Muçuí, ou São Miguel de Muçuí, aldeia onde Manoel havia assistido e conhecia como a palma da mão, distante sete léguas (42 quilômetros) de Olinda, na qual moravam índios potiguaras e tabajaras, os primeiros capitaneados por Felipe Camarão, os segundos por Estevão, chamado em tupi de Tebu, seiscentos habitantes no total, dos quais 170 “bons mosqueteiros”; a aldeia de Caeté ou Nossa Senhora de Ipojuca, distante doze léguas (72 quilômetros) de Olinda, 1100 almas, quatrocentos guerreiros, chefiada pelos capitães Jerônimo (Jerona, em tupi) e por Topinambouto, também conhecido por Serenibe; a aldeia de São Miguel de Iguna, a vinte léguas (120 quilômetros) de Olinda, na costa, rumo ao São Francisco, seiscentos habitantes, duzentos guerreiros, tendo por chefes Manuel (em tupi Manu), potiguar, e João (Jani, em tupi), tabajara.
As informações de Manoel de Moraes foram extensas, detalhadas e preciosas, embora incompletas. Diferem, em número, das informações oferecidas por Serafim Leite [2], nem tanto para o Rio Grande e Paraiba, onde este último nomeou cinco aldeias, contra seis de Manoel, do que para Pernambuco, onde o historiador inaciano localizou dez, provavelmente incluindo as de Itamaracá, contra seis aldeamentos referidos por Manoel de Moraes. Quanto aos nomes das aldeias, alguns coincidem, outros não.
Mas é preciso considerar que Serafim Leite baseou-se nos relatórios anuais (as Cartas Ânuas) e catálogos da Companhia, enquanto Manoel de Moraes possuía um conhecimento empírico, seja como ex-missionário, seja como capitão de emboscada. Seu registro pode ter sido incompleto em alguns aspectos, porém mais preciso em outros, como no tocante ao local das aldeias, seus pontos de referência, os caminhos, potencial militar, os nomes de cada chefe, por vezes o nome português e o nome tupi. Em suma, um tesouro de informações para a conquista holandesa.
As informações dadas por Manoel aos holandeses estiveram certamente incluídas no acordo que fez com Artichewski após a queda da Paraíba. Trabalho impecável de espião ou informante, para dizer o mínimo, porque Manoel fez com que várias dessas aldeias mudassem de lado."
Notas:
[1] Joannes de Laet. História ou anais dos feitos da Companhia Privilegiada das Índias Ocidentais, desde o começo até o fim do ano de 1636 (original de 1644). CD-rom anexo às Memórias Diárias, de Duarte de Albuquerque Coelho; Robert Southey. História do Brasil (original de 1810-1819). Belo Horizonte, Itatiaia, 1981, vol. 2, p. 66.
[2] Cf. Serafim Leite. Breve História da Companhia de Jesus no Brasil. Braga, Livraria AI, 1993, Apêndica IV, pp. 253-7.
(VAINFAS, 2008, p.71-74)
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FONTE
VAINFAS, Ronaldo. Traição - Um jesuíta a serviço do Brasil Holandês processado pela Inquisição. São Paulo, SP, Brasil: Companhia das Letras (Editora Schwarcz Ltda), 2008.
PEREIRA, Levy. Coleção Levy Pereira: Atlas Digital da América Lusa (2017).
Imagem da capa:
PARA SABER MAIS:
MEUWESE, Marcus P. “For the Peace and Well-being of the Country”: Intercultural Mediators and Dutch-Indian Relations in New Neatherland and Dutch Brazil, 1600- 1664. Tese de Doutorado. University of Notre Dame, Notre Dame, Indiana, Setembro de 2003.
MIRANDA, Bruno Romero Ferreira. Gente de Guerra: Origem, cotidiano e resistência dos soldados do exército da Companhia das Índias Ocidentais no Brasil (1630-1654), Tese de doutorado, Universidade de Leiden, 2011.
SILVA, Wesley de Oliveira Silva. Índios de guerra: aldeamentos e tropas indígenas na capitania de Pernambuco entre 1660 e 1695. Dissertação (Mestrado) - Universidade Federal Rural de Pernambuco, Programa de Pós-Graduação em História, Recife, 2022.
XAVIER, Rômulo. A flecha e o mosquete: índios e batavos no Brasil holandês. In, Clio. Revista de Pesquisa Histórica. Vol. 25, N. 2 (2007). Dossiê: História dos Povos Indígenas. Recife. UFPE. p. 130-149.
NOTAS
[i] A localização de algumas aldeias neste relato do Padre Manoel de Moraes é controversa. Para a produção do mapa consideramos a leitura de Levy Pereira no Atlas Digital da América Lusa, o que apresenta algumas diferenças de localização em relação ao que Ronaldo Vainfas interpretou.
[ii] Mameluco era o termo utilizado para designar os mestiços de brancos e indígenas nos núcleos coloniais dos primeiros séculos da colonização do Brasil. Geralmente compunham as tropas e bandeiras que penetravam no interior do continente em busca de ouro e de indígenas para escravizar.
[iii] A aldeia de São Miguel de Muçuí recebeu diferentes nomes e grafias ao longo do tempo: Munsuí, Monçuí, Muçuy, Mocuípe, Meritibi, Moçuig, Mossuri, Mocuigue, Mocnigh. Fica localizada no antigo engenho Aldeia, atualmente Campo de Instrução do Exército Brasileiro entre os municípios de Araçoiaba e Pau Dalho.
[iv] Antônio Felipe Camarão (Poti) foi um líder Potiguara que durante o período da ocupação holandesa no Nordeste lutou ao lado das forças luso-brasileiras. Provavelmente nascido no Rio Grande do Norte, por volta do ano de 1600, faleceu em 24 de agosto de 1648, no Arraial Novo do Bom Jesus (cujas ruínas ficam no atual bairro de Torrões, no Recife), em decorrência de ferimentos sofridos na primeira batalha dos Guararapes. Durante o período mais intenso da guerra trocou cartas com seu parente Pedro Poti, líder dos Potiguara aliados aos holandeses. Estas cartas, escritas na língua tupi, registraram as opiniões divergentes dos indígenas que se punham de um lado e outro dos combates.
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